Mazer na Prisão
Um Conto do Universo de Ender
por Orson Scott Card
Esta história se passa antes dos eventos narrados no premiado romance O Jogo do Exterminador
(Ender's Game) e envolve um dos seus mais carismáticos personagens secundários, Mazer Rackham,
herói da primeira batalha contra os alienígenas invasores.
Título original: "Mazer in Prison" © 2005, 2007, 2010 by Orson Scott Card
Traduzido por Roberto de Sousa Causo
Ser a última e a melhor esperança da humanidade era uma droga de serviço.
Claro, o pagamento era ótimo, mas tinha que ficar acumulando em um banco lá na Terra,
porque aqui não havia onde fazer compras.
Não havia onde caminhar. Quando o seu programa oficial de exercícios consistia em ter seus
músculos eletricamente estimulados enquanto você dormia, e então ser girado em uma centrífuga
para que seus ossos não se dissolvessem, não há muito o que esperar de um dia rotineiro.
Para Mazer Rackham, parecia que ele estava sendo castigado por ter vencido a última guerra.
Após a derrota dos fórmicos invasores - ou "abelhudos", como eram comumente chamados
-, a Esquadra Internacional aprendeu tudo o que pôde a partir da tecnologia dos alienígenas.
Então, tão rápido quanto conseguiam construir as naves estelares recém-concebidas, a ei
lançava-as rumo ao mundo natal dos fórmicos, e para os outros planetas que haviam sido
identificados como colônias fórmicas.
Mas eles não enviaram Mazer com nenhuma dessas naves. Se o tivessem, então ele não
estaria completamente sozinho. Haveria outras pessoas com quem conversar - pilotos de caça,
tripulantes. Primatas com rostos e mãos e vozes e cheiros... Era pedir demais?
Não, ele tinha uma missão muito mais importante. Deveria comandar todas as esquadras em
seus ataques contra todos os mundos fórmicos. Isso significava que ele precisaria estar de volta
ao Sistema Solar, comunicando-se com todas as esquadras por ansível.
Ótimo. Um aconchegante serviço de gabinete. Ele era velho o bastante para apreciar isso.
Exceto por uma ressalva.
Já que a viagem espacial poderia apenas se aproximar mas nunca precisamente alcançar
trezentos milhões de metros por segundo, levaria muitos anos para que as esquadras chegassem
aos planetas-alvos. Durante esses anos de espera, nos quartéis-generais da Esquadra
Internacional - qg-ei -, Mazer se tornaria velho e frágil, física e mentalmente.
A fim de mantê-lo jovem o bastante para ser útil, eles o trancaram em uma nave-correio
voando próxima à velocidade da luz, e o lançaram numa jornada completamente sem sentido. Foi
decretado que, em algum ponto arbitrário no espaço, ela poderia desacelerar, dar meia-volta, e
então retornar à Terra na mesma velocidade, chegando poucos anos antes das esquadras
alcançarem o destino e começar a pancadaria. Ele não teria envelhecido mais do que cinco anos
durante a viagem, ainda que décadas tivessem se passado na Terra.
Que bem ele lhes faria como comandante, se perdesse o juízo durante a viagem?
É claro, tinha livros o suficiente, no banco de dados de bordo. Milhões deles. E anúncios de
novos livros eram enviados a ele por ansível; qualquer um que desejasse, poderia solicitar e
receber em instantes.
O que ele não poderia ter era uma conversação.
Havia tentado. Afinal de contas, qual era a diferença entre o ansível e os e-mails regulares
das redes? O problema era o diferencial de tempo. Para ele, parecia que enviava uma mensagem
e ela era respondida imediatamente. Mas para a pessoa na outra ponta, a mensagem de Mazer se
estendia por vários dias, chegando um pouco por vez. Quando a mensagem inteira tivesse sido
recebida e montada, a pessoa poderia escrever uma resposta imediatamente. Mas para ser
recebida pelo ansível no barquinho de Mazer, a resposta também seria espaçada um pouco por
vez.
O resultado era que, para a pessoa com quem Mazer falava, muitos dias se passariam entre as
partes da conversação. Seria como falar com alguém com uma gagueira tão incrível, que você
poderia ir embora, viver a sua vida por uma semana, e então voltar antes que ela tivesse
finalmente cuspido o que quer que tivesse a dizer.
Umas poucas pessoas haviam tentado, mas a esta altura, com Mazer se aproximando do
ponto em que iria desacelerar e virar a nave, suas comunicações com o qg-ei no asteroide Eros
eram limitadas, em sua maior parte, a solicitações de livros e hologramas e filmes, mais o seu
blip diário - a mensagem que enviava apenas para tranquilizar a ei de que não estava morto.
Ele poderia até tornar o blip um procedimento automático - não que Mazer ignorasse como
contornar os firewalls e reprogramar o computador de bordo. Mas a cada dia ele, por dever,
compunha uma mensagem nova e única, que sabia que mal seria lida no qg-ei. Até onde alguém
lá se importasse, Mazer poderia muito bem estar morto; eles todos teriam ido para a reserva ou
até morrido, antes que ele retornasse.
O problema da solidão não era surpresa, é claro. Eles haviam até sugerido enviar alguém com
ele. O próprio Mazer havia vetado a ideia, porque lhe parecera estúpido e cruel dizer a alguém
que era tão completamente inútil para a esquadra, para todo o esforço de guerra, que poderia ser
mandado na viagem sem rumo de Mazer apenas para segurar sua mão. "Como será o seu pôster
de recrutamento, ano que vem?" Mazer havia perguntado. "'Una-se à Esquadra e passe os
próximos dois anos como acompanhante pago de um envelhecido capitão espacial!'?"
Para Mazer, iam ser poucos anos. Era uma pessoa reservada que não se importava de estar
sozinho. Tinha certeza de que podia lidar com isso.
O que não tinha levado em conta foi o quão longos dois anos de confinamento solitário
seriam. Eles fazem isso, percebeu, a prisioneiros que se comportaram mal, como a pior punição
que poderiam dar. Pense nisso - estar completamente só por longos períodos de tempo é pior do
que ter por companhia os mais vis e estúpidos condenados conhecidos pelo homem.
Nós evoluímos para sermos criaturas sociais; os fórmicos, tendo uma mente-colméia por
natureza, nunca estão sós. Podem viajar deste jeito impunemente. Para um humano solitário, era
tortura.
E é claro que havia a minúscula questão de deixar a sua família para trás. Mas ele não
pensaria nisso. Não fazia sacrifício maior do que qualquer um dos outros guerreiros que
decolaram nas esquadras enviadas para destruir o inimigo. Ganhando ou perdendo, nenhum deles
voltaria a ver suas famílias. Nisto, pelo menos, ele era um com os homens que iria comandar.
O problema real era este, que somente ele reconhecia: não tinha uma pista sequer de como
salvar a raça humana, quando voltasse.
Essa era a parte que ninguém parecia entender. Explicou a eles que não era um comandante
particularmente bom, que tinha vencido aquela batalha crucial por pura sorte, que não havia
razão para pensar que poderia fazer algo assim novamente. Seus oficiais superiores concordavam
que ele podia estar certo. Prometeram recrutar e treinar novos oficiais enquanto Mazer estivesse
longe, tentando encontrar um comandante melhor. Mas no caso de não o encontrarem, Mazer era
o cara que disparara o único míssil que terminara a guerra anterior. As pessoas acreditavam nele.
Mesmo que ele não acreditasse em si mesmo.
É claro, conhecendo a mente militar, Mazer sabia que eles arruinariam completamente a
busca por um novo comandante. O único modo de levarem a busca a sério seria se não
acreditassem que tinham Mazer Rackham como um ás na manga.
Mazer sentou-se no espaço confinado atrás do assento do piloto, e estendeu a perna esquerda,
alongando-a, então colocando-a atrás da cabeça. Não era qualquer homem da sua idade que
conseguia fazer isso. Definitivamente, não qualquer maori, não aqueles com a tradicional
corpulência de um homem totalmente crescido. É claro, ele era apenas meio-maori, mas isso não
é dizer que as pessoas de sangue europeu fossem conhecidas pela sua extraordinária flexibilidade
física.
O alto-falante do console disse:
- Recebendo mensagem.
- Estou ouvindo - disse Mazer. - Faça uma voz para ela e pode ler agora.
- Voz masculina ou feminina? - o computador perguntou.
- E quem se importa? - Mazer disse.
- Masculina ou feminina? - o computador repetiu.
- Aleatória - disse Mazer.
Então a mensagem foi lida para ele numa voz feminina.
- Almirante Rackham, meu nome é Hyrum Graff. Foi designado para conduzir o
recrutamento para a Escola de Combate, o primeiro passo em nosso programa de treinamento de
jovens oficiais superdotados. Meu trabalho é varrer a Terra à procura de alguém para liderar
nossas forças durante o conflito que se avizinha... no seu lugar. Ouvi da parte de todos os que se
importaram em me responder, que o critério era simples: ache alguém exatamente como Mazer
Rackham.
Mazer percebeu-se interessado no que esse cara dizia. Eles de fato procuravam o seu
substituto. Esse homem estava encarregado da busca. Ouvi-lo numa voz de outro sexo parecia
um gesto gozador e desrespeitoso.
- Voz masculina - Mazer disse.
Imediatamente a voz se alterou para um robusto barítono.
- O problema que estou tendo, Almirante, é que, quando pergunto a eles especificamente
quais traços seus eu deveria identificar nos meus recrutas, tudo se torna vago demais. A única
conclusão a que posso chegar é esta: o seu atributo que eles querem que o novo comandante
possua é "vitorioso". Eu argumento em vão que preciso de diretrizes melhores do que essa.
"Então me voltei para o senhor, em busca de ajuda. Sabe tão bem quanto eu que houve um
certo componente de sorte envolvido na sua vitória. Ao mesmo tempo, viu o que ninguém mais
conseguiu ver, e agiu - contra as ordens - exatamente no momento certo para que o seu avanço
passasse despercebido pela Rainha da Colméia. Ousadia, coragem, iconoclastia... Talvez
possamos identificar esses traços. Mas como fazer testes que identifiquem visão?
"Há um componente social, também. Os homens em sua tripulação confiavam no senhor o
bastante para obedecer às suas ordens insubordinadas e colocar as carreiras deles, para não dizer
vidas, em suas mãos.
"Sua ficha de reprimendas por insubordinação sugerem, também, que o senhor é um crítico
experiente de comandantes incompetentes. Então também possui ideias muito claras do que o
seu futuro substituto não deveria ser.
"Portanto, obtive permissão para usar o ansível a fim de questioná-lo quanto aos atributos
que precisamos procurar - ou evitar - nos recrutas que encontrarmos. Na esperança de que o
senhor ache este projeto mais interessante do que quer que esteja fazendo aí no espaço, eu
ansiosamente aguardo sua resposta."
Mazer suspirou. Esse Graff soava exatamente como o tipo de oficial que deveria ser
encarregado de encontrar o substituto de Mazer. Mas Mazer também conhecia o suficiente da
burocracia militar para saber que Graff seria mastigado e cuspido, logo na primeira vez que de
fato tentasse realizar alguma coisa. Obter permissão para se comunicar por ansível com um
velhote que estava efetivamente morto era fácil demais.
- Qual é o posto do remetente? - Mazer perguntou ao console.
- Tenente.
O pobre Tenente Graff havia obviamente subestimado o terror que os oficiais incompetentes
sentem na presença de jovens, inteligentes e energéticos substitutos.
Pelo menos seria uma conversação.
- Anote esta resposta, por favor - Mazer disse. - Prezado Tenente Graff, lamento pelo tempo
que gastou aguardando por esta mensagem... Não, risque isso, por que aumentar a perda de
tempo enviando uma mensagem recheada de papo furado?
Mas então, fazer um monte de edições atrasaria a mensagem do mesmo jeito.
Mazer suspirou, desenrolou-se do seu alongamento, e foi até o console.
- Vou digitar eu mesmo - disse Mazer. - Sairá mais rápido assim.
Encontrou as palavras que acabara de ditar esperando por ele na tela do console de
mensagens, com a janela com a mensagem de Graff logo atrás. Jogou essa mensagem para
frente, leu-a outra vez, e então pegou a sua própria mensagem de onde a tinha deixado.
"Não sou um especialista em identificar traços de liderança. Sua mensagem revela que você
já pensou mais sobre isso do que eu. Por mais que eu possa desejar que seu empenho seja bem-sucedido, já que me livraria do fardo do comando quando do meu retorno, não posso ajudá-lo."
Brincou com a ideia de acrescentar "Deus não poderia ajudá-lo", mas decidiu deixar o rapaz
descobrir como o mundo funcionava, sem alertas terríveis e inúteis da parte de Mazer.
Ao invés, disse "enviar", e o console replicou: "Mensagem enviada por ansível."
"E isso", Mazer pensou, "encerra o assunto".
*
A resposta só veio depois de mais de três horas. O que era isso, um mês lá na Terra?
- De quem é? - Mazer perguntou, sabendo perfeitamente bem quem seria.
Então o rapaz havia empregado o seu tempo, antes de retomar a questão. Tempo suficiente
para entender o quão impossível era a sua tarefa? Provavelmente não.
Mazer estava sentado na privada - que, graças à tecnologia gravítica dos fórmicos, era um
modelo químico padrão dependente de gravidade. Mazer era um dos poucos ainda na ativa que
se lembravam dos dias de vasos de sucção de ar em espaçonaves sem peso, que funcionavam só
metade do tempo. Na época em que os capitães das naves podiam ser exonerados por desperdiçar
combustível ao acelerar suas naves apenas para que pudessem soltar um que fosse realmente
empurrado para longe dos seus traseiros, por algo como a gravidade.
- Tenente Hyrum Graff.
E agora ele tinha essa pestilento do Hyrum Graff, que provavelmente seria ainda mais
irritante do que privadas zero-g.
- Apague.
- Não tenho permissão de apagar comunicações de ansível - disse a branda voz feminina.
Era sempre branda, é claro, mas soava particularmente branda quando dizia coisas irritantes.
"Eu poderia fazer você apagá-la, se quisesse me dar ao trabalho de te reprogramar." Mas
Mazer não disse isso, pois poderia alertar as salvaguardas do programa de algum modo.
- Leia, então.
- Voz masculina?
- Feminina - Mazer estalou.
- Almirante Rackham, não estou certo de que o senhor compreendeu a gravidade da nossa
situação. Temos duas possibilidades: ou conseguiremos identificar os melhores comandantes
possíveis para a nossa guerra contra os fórmicos, ou teremos você como nosso comandante.
Então, ou nos ajuda a identificar os traços que serão mais prováveis de estarem presentes no
comandante ideal, ou você será o comandante sobre o qual vai recair toda a responsabilidade.
- Compreendo isso, seu bestinha - Mazer disse. - Já compreendia antes de você nascer.
- Gostaria que eu anotasse as suas observações como uma réplica? - perguntou o
computador.
- Apenas leia e ignore a minha reclamação.
O computador retornou à mensagem do Tenente Graff.
- Eu localizei sua esposa e filhos. Estão todos em boa saúde, e pode ser que um ou todos eles
agradeçam à oportunidade de conversar com o senhor por ansível, se desejar. Ofereço isso não
como suborno pela sua cooperação, mas como lembrete, talvez, de que há mais em jogo aqui do
que as inconveniências de um tenente presunçoso aborrecendo um almirante e um herói de
guerra numa viagem para o futuro.
Mazer rugiu a sua resposta:
- Como se eu precisasse de lembretes vindos de você!
- Gostaria que eu anotasse as suas observações como?…
- Eu gostaria que você se calasse e me deixasse em…
- Uma réplica? - terminou o computador, ignorando a sua reclamação.
- Paz! - Mazer suspirou. - Anote esta resposta: sou divorciado, e minha ex-esposa e filhos
têm levado a vida sem mim. Para eles, eu estou morto. É detestável da sua parte tentar me tirar
da cova para atormentar a vida deles. Quando lhe digo que nada tenho a dizer sobre comando é
porque realmente não tenho respostas que você poderia vir a implementar.
"Desejo desesperadamente que ache um substituto para mim, mas em toda a minha
experiência nas forças armadas, não vi nenhum exemplo do tipo de comandante que precisamos.
Então descubra você mesmo... Eu não tenho qualquer ideia."
Por um momento, permitiu que sua raiva se incendiasse.
- E deixe a minha família fora disto, seu desprezível... - Então decidiu não incendiar o pobre
paspalho. - Delete tudo depois de "deixe minha família fora disso".
- Deseja que eu leia de volta para você?
- Eu estou na privada!
Como sua resposta nada respondia, o computador repetiu a pergunta textualmente.
- Não. Apenas envie. Não quero fazer o zeloso Tenente Graff esperar uma hora ou um dia a
mais só para que eu possa transformar a minha carta em um ensaio escolar premiado.
*
Mas a questão de Graff o perseguia. O que eles deveriam procurar num comandante?
O que importava? Assim que desenvolvessem uma lista de traços desejáveis, todos os
burocratas cheira-peidos iriam descobrir imediatamente como fingir que os tinham, e todos
estariam de volta ao ponto de partida, com os melhores burocratas no topo de cada hierarquia
militar, e todos os líderes genuinamente brilhantes ou desmobilizados, ou desmoralizados.
"Do modo como eu estava desmoralizado, pilotando uma nave de suprimentos quase
desarmada, nos escalões da retaguarda da nossa formação."
O que era em si uma marca da estupidez dos nossos comandantes - esse fato de pensarem
que poderia haver tal coisa como um "escalão de retaguarda" durante uma guerra no espaço de
tridimensional.
"Poderia ter havido dúzias de homens que conseguiam ter enxergado como eu - o ponto de
vulnerabilidade na formação dos fórmicos - mas eles há muito haviam deixado o serviço. A
única razão de eu estar lá foi porque não poderia me dar ao luxo de desistir, antes de tomar posse
da minha aposentadoria. Então suportei comandantes detestáveis que me puniriam por ser um
oficial melhor do que eles jamais seriam. Aguentei o abuso, o desprezo, e lá estava eu pilotando
uma nave com só duas armas - e ainda por cima mísseis lentos.
"Acabou sendo que só precisei de um.
"Mas quem teria previsto que eu estaria lá, para ver o que vi, e que cometeria suicídio de
carreira ao disparar meus mísseis contra as ordens... e que tudo acabaria dando certo? Que
processo pode criar testes para encontrar isso? Poderiam muito bem recorrer à oração... Ou Deus
zela pela raça humana, ou Ele não se importa. Se Ele se importa, então sobreviveremos apesar da
nossa estupidez. Se não se importa, então não sobreviveremos."
Num universo que trabalha assim, qualquer tentativa de antecipar os traços de grandes
comandantes é totalmente inútil.
- Recebendo imagens - disse o computador.
Mazer olhou para baixo, para a sua tela de mesa, onde havia rabiscado:
Desespero
Intuição (faça testes para achar isso, otário!)
Tolerância às ordens recebidas de imbecis.
Senso pessoal de missão beirando o insano.
"É, essa é a lista que Graff espera que eu lhe envie.
"E agora o rapaz enviava imagens. Quem aprovou isso?"
Mas a cabeça que piscou no holoespaço acima da sua mesa não era a do aplicado jovem
tenente. Era uma moça de cabelos claros como os de sua mãe e uns poucos traços da aparência
meio-maori de seu pai. Mas os traços estavam lá, e ela era bonita.
- Pare - Mazer disse.
- É necessário que eu lhe mostre...
- Isto é pessoal. É uma intrusão.
- ...Todas as comunicações de ansível.
- Mais tarde.
- Esta é uma transmissão visual e portanto tem alta prioridade. Banda de ansível
suficientemente larga para visuais totalmente animados será usada apenas para comunicações
da...
Mazer desistiu.
- Apenas rode a transmissão.
- Papai - disse a jovem no holoespaço.
Mazer desviou o olhar dela, inconscientemente escondendo o rosto, embora ela não pudesse
vê-lo, é claro. Sua filha, Pahi Mahutanga. Quando a viu pela última vez, ela era uma menina de
cinco anos que trepava em árvores. Costumava ter pesadelos, mas com seu pai sempre em
serviço com a esquadra, não havia quem mandasse embora os sonhos ruins.
- Eu trouxe os seus netos comigo - ela dizia. - Pahu Rangi ainda não encontrou uma mulher
que o deixe se reproduzir. - Sorriu maliciosamente a alguém fora da cobertura. Seu irmão, o
filho de Mazer. Apenas um bebê, concebido em sua última licença antes da batalha final. -
Contamos às crianças tudo sobre você. Sei que não dá para vê-los todos de uma vez, mas se
vierem um de cada vez até a área do campo comigo por apenas uns momentos... É tão generoso
da parte deles me deixarem...
"Mas ele disse que você podia não gostar de me ver. Mesmo que seja verdade, Papai, sei que
gostará de ver seus netos. Eles ainda estarão vivos quando você retornar. Eu mesma talvez esteja.
Por favor, não se esconda de nós. Sabemos que quando se divorciou da Mãe, foi pelo bem dela, e
do nosso. Sabemos que nunca parou de nos amar. Vê? Aqui está Kahui Kura. E Pao Pao Te
Rangi. Eles também têm nomes em inglês, Mirth e Glad, mas se orgulham de serem filhos dos
maoris. Através de você. Mas o seu neto Mazer Taka Aho Howarth insiste em usar o nome pelo
qual você é... conhecido. E quanto ao bebê Struan Maeroero, ele vai poder escolher quando for
maior."
Ela suspirou.
- Suponho que ele será nosso último filho, se as cortes da Nova Zelândia apoiarem as novas
regras populacionais da Hegemonia.
Conforme cada uma das crianças pisava dentro do campo, tímidas ou seguras de si,
dependendo de sua personalidade, Mazer tentava sentir algo em relação a elas. Duas filhas
primeiro, tímidas, adoráveis. O garotinho batizado em sua homenagem. Finalmente o bebê que
alguém levantou para dentro do campo.
Elas eram estranhos, e antes que pudesse se encontrar com eles, seriam pais eles próprios.
Talvez avós. Qual era a razão disso? "Eu disse à sua mãe que devíamos estar mortos um para o
outro. Ela tinha que pensar em mim como uma baixa de guerra, mesmo que a papelada dissesse
Divorciado ao invés de Morto em Ação.
"Ela ficou tão brava que me disse que preferia que eu tivesse morrido. Ia contar aos nossos
filhos que eu estava morto. Ou que eu os tinha abandonado, sem dar a eles qualquer motivo, para
que então me odiassem.
"Agora, acaba sendo que ela transformou minha partida em uma lembrança sentimental de
sacrifício por Deus e pela pátria. Ou pelo menos pelo planeta e pela espécie."
Mazer obrigou-se a não imaginar que isso significava que ela o tinha perdoado. Era ela quem
tinha filhos para criar... O que decidiu contar-lhes não era assunto dele. Teria sido algo que a
ajudasse a criar filhos sem pai.
Ele não se casou e teve filhos até que já estivesse na meia-idade - temera começar uma
família sabendo que estaria longe em viagens que durariam anos de cada vez. Então ele, Kim, e
todo o processo racional voaram pela janela. Ele queria - seu ADN queria - que seus filhos
existissem, mesmo que não estivesse lá para criá-los. Pahi Mahutanga e Pahu Rangi - queria que
as vidas de seus filhos fossem estáveis e boas, ricas em oportunidades, por isso ficou na ativa a
fim de receber os bônus de separação que pagariam o seu ensino superior.
Então lutou na guerra para mantê-los seguros. Mas iria se retirar, quando a guerra
terminasse,e ir para casa, para junto deles enfim, enquanto ainda eram jovens o bastante para
receberem bem o seu pai. E então ele pegou esta missão.
"Por que vocês não podem apenas decidir, seus bastardos? Decidir que vão me substituir, e
então me deixar ir para casa e ter a minha recepção de herói e então me aposentar em
Christchurch e ouvir o soar dos sinos me dizer que Deus está no céu e tudo está bem com o
mundo. Vocês poderiam ter me deixado em casa com minha família, para criar meus filhos, para
estar lá para convencer Pahi a não batizar seu primeiro filho em minha homenagem.
"Eu poderia ter-lhes dado todo o aconselhamento e o treinamento que vocês quisessem -
mais do que poderiam usar, com certeza - e então deixado a esquadra e tido algum tipo de vida.
Mas não, eu tinha que abandonar tudo e vir para cá nesta caixa miserável enquanto vocês
vacilam."
Mazer notou que o rosto de Pahi estava congelado e que ela não fazia qualquer som.
- Você parou a exibição - Mazer disse.
- Você não estava prestando atenção - disse o computador. - Esta é uma transmissão visual
de ansível, e você precisa...
- Estou assistindo agora - disse Mazer.
A voz de Pahi retornou, e o visual tornou a se mover.
- Eles vão retardar isto, para transmiti-lo a você. Mas você sabe tudo sobre dilatação de
tempo. A largura de banda é cara, também, então acho que terminei a parte visual disto. Escrevi
uma carta, e os meninos também. E Pahu jura que um dia vai aprender a ler e escrever.
Ela riu outra vez, olhando para alguém fora do campo. Só podia ser o filho dele, o bebê que
ele nunca vira. Provocadoramente próximo, mas sem entrar no campo. Alguém controlava tudo.
Alguém decidiu não deixá-lo ver seu filho. Graff? Estaria manipulando isso tudo de perto? Ou
era Kim quem decidia? Ou o próprio Pahu?
- A Mãe também escreveu. Na verdade, várias cartas. Ela não quis vir, porém. Não quer que
você a veja parecendo envelhecida. Mas ela ainda é bonita, Papai. Mais bonita do que nunca,
com cabelo branco e… Ela ainda o ama. Quer que se lembre dela mais jovem. Ela me disse uma
vez: "Eu nunca fui bonita, e quando conheci um homem que pensava que eu era, casei-me com
ele apesar das suas mais sinceras objeções."
Sua imitação da mãe foi tão precisa que deteve a respiração de Mazer por um momento.
Poderia ser verdade que Kim se recusara a vir por causa de alguma vaidade tola sobre a sua
aparência? Como se ele fosse se importar!
Mas ele iria se importar. Porque ela estaria envelhecida, e isso provaria que era verdade, que
ela certamente estaria morta antes que ele regressasse à Terra. E por causa disso, não haveria lar
ao qual voltar. Não havia um lugar assim.
- Eu te amo, Papai - Pahi dizia. - Não só porque você salvou o mundo. Honramos você por
isso, é claro. Mas o amamos porque você fez a Mãe tão feliz. Ela contava histórias sobre você. É
como se nós o conhecêssemos. E seus antigos colegas nos visitavam, às vezes, e então
percebíamos que a Mãe não estava exagerando sobre você. Ou isso, ou todos exageravam. - Ela
riu. - Você tem sido parte de nossas vidas. Podemos ser estranhos aos seus olhos, mas você não é
um estranho para nós.
A imagem oscilou, para retornar com Pahi não bem na mesma posição. Houve uma edição.
Talvez porque ela não quisesse que ele a visse chorar. Mas Mazer sabia que ela estava prestes a
chorar, porque seu rosto ainda assumia a mesma expressão antes do choro, que fazia quando era
pequena. Não se passara tanto tempo para ele, desde que ela era pequena. Lembrava-se muito
bem.
- Não precisa responder a isso - ela disse. - O Tenente Graff nos contou que você pode não
receber bem esta transmissão. Pode até se recusar a vê-la. Não queremos tornar a sua viagem
ainda mais difícil. Mas Papai, quando você voltar, voltar para junto de nós, você terá um lar. Em
nossos corações. Mesmo que eu não esteja mais aqui, mesmo que apenas nossos filhos estejam
aqui para recebê-lo, nossos braços estarão abertos. Não para saudar o herói conquistador. Mas
receber em casa o nosso papai e vovô, por mais velhos que sejamos. Eu te amo. Todos nós o
amamos. Todos.
E então, quase no último instante:
- Por favor, leia as nossas cartas.
- Tenho cartas para você - disse o computador, enquanto o holoespaço se esvaziava.
- Guarde-as - disse Mazer. - Voltarei a elas.
- Você está autorizado a enviar uma resposta visual - disse o computador.
- Isso não vai acontecer - Mazer disse.
Mas no instante em que o dizia, ele se perguntava o que poderia vir a dizer, se mudasse de
ideia e enviasse a eles a sua imagem. Alguma fala heroica sobre a nobreza do sacrifício? Ou um
pedido de desculpas por ter aceitado a missão?
Nunca mostraria seu rosto a eles. Nunca deixaria Kim ver que ele não havia mudado.
Leria as cartas. E as responderia. Tinha deveres para com a família, ainda que a razão de eles
estarem envolvidos fosse o babaca intrometido de um tenente.
- Minha primeira carta - Mazer disse -, será para aquele paspalho do Graff. É bastante
breve: "Deixe de ser abelhudo, seu paspalhoide." Assine com, "respeitosamente seu".
- "Abelhudo" é um substantivo. "Paspalho" é um adjetivo, abaixo do padrão, e
"paspalhoide" não está em nenhuma das minhas bases lexicais. Não posso soletrar ou analisar a
mensagem propriamente sem uma explicação... Você quer dizer "saia daqui, inimigo
alienígena?"
- Eu inventei "paspalhoide", e é uma palavra excelente, então use-a. E não posso acreditar
que eles te programaram sem "deixe de ser abelhudo" na sua base lexical.
- Eu detecto stress - disse o computador. - Você aceitaria um leve sedativo?
- O stress está sendo causado por você querendo me forçar a ver uma mensagem que eu não
quero ver. Você está causando o meu stress. Então me dê um tempo para me acalmar.
- Recebendo mensagem.
Mazer sentiu o seu nível de stress subir ainda mais. Então suspirou e se reclinou e disse:
- Leia. É de Graff, certo? Sempre use uma voz masculina para o paspalhoide.
- Almirante Rackham, desculpe por me intrometer - o computador disse em barítono. -
Depois que eu levantei a possibilidade de deixar a sua família contatá-lo, meus superiores não
desistiram mais da ideia, ainda que eu os tenha alertado de que mais provavelmente ela seria
contraproducente, se o senhor já não tivesse concordado. Ainda assim, foi minha ideia e assumo
total responsabilidade, mas sei que também foi meio sem jeito, por não termos pedido a sua
permissão, e isso não foi responsabilidade minha. Embora fosse completamente previsível, em se
tratando dos militares. Não há ideia estúpida demais para que não seja agarrada e transformada
na base de um procedimento, e não há ideia inteligente demais para que não seja percebida como
ameaça pelos empilhadores de papel, que a matarão se puderem, ou reivindicarão crédito total
sobre ela, se funcionar. Estou descrevendo as forças armadas que o senhor conhece?
"Rapaz esperto", Mazer pensou. "Dirija minha raiva para a ei. Faça de mim um amigo seu."
- Contudo, foi tomada a decisão de lhe enviar apenas aquelas cartas que o senhor acharia
encorajadoras. Você foi "manobrado", Almirante Rackham. Mas se quiser todas as cartas, eu me
certificarei de que tenha o quadro completo. Não vai fazê-lo mais feliz, mas pelo menos saberá
que não estou tentando manipulá-lo.
- Ah, certo - disse Mazer.
- Ou pelo menos que não estou tentando enganá-lo - disse o computador. - Tento persuadi-lo, conquistando sua confiança, se puder, e então a sua cooperação. Não mentirei ou omitirei
informações a fim de enganá-lo. Diga-me se deseja todas as cartas ou se está contente com a
versão confortável da vida de sua família.
Mazer soube então que Graff tinha vencido. Mazer não teria escolha além de responder, e
nenhuma escolha além de requerer as cartas omitidas. Então ele estaria devendo ao paspalhoide.
Enraivecido, mas devedor.
A questão real era esta: Graff encenava a coisa toda? Foi ele quem reteve as cartas
desconfortáveis, só para que pudesse ganhar pontos com Mazer ao liberá-las mais tarde? Ou
Graff estava assumindo algum tipo de risco, enganando o sistema a fim de enviar-lhe o conjunto
completo das cartas?
Ou Graff, um mero tenente, tinha um grau de poder que o permitia abertamente zombar das
ordens dos seus superiores com impunidade?
- Não mande a carta do abelhudo - Mazer disse.
- Já a enviei e um recibo foi confirmado.
- Eu na verdade estou bem feliz de que você tenha feito isso - disse Mazer. - Então aqui está
a minha próxima mensagem: "Mande as cartas, paspalhoide."
Em poucos minutos, chegou a resposta, e desta vez o número de cartas era muito maior.
E com nada mais a fazer, Mazer abriu-as e começou a ler silenciosamente, na ordem que
foram enviadas. O que significava que as primeiras cem eram todas de Kim.
A progressão das cartas mais antigas era previsível, mas não menos dolorosas de se ler. Ela
estava magoada, enraivecida, desgostosa, ressentida, cheia de saudades. Tentava feri-lo com
denúncias, ou com culpa, ou atormentando-o com lembranças sexualmente carregadas. Talvez
atormentasse a si mesma.
Suas cartas, até mesmo as iradas, eram lembretes do que ele havia perdido, da vida que uma
vez tivera. Não é como se ela forjasse o seu temperamento para essa ocasião. Ela sempre o
tivera, e Mazer fora castigado por ele antes, e exibia algumas velhas cicatrizes. Mas agora tudo
se combinava para fazê-lo sentir falta dela.
Suas palavras o magoavam e o atormentavam, faziam-no sofrer, e frequentemente ele tinha
de parar de ler e ouvir alguma coisa - música, poesia, ou os zumbidos e cliques do maquinário
sutil no aparelho aparentemente imóvel que se lançava pelo espaço em, como os físicos lhe
asseguravam, um estado de onda, embora ele não pudesse detectar qualquer falta de solidez em
qualquer um dos objetos dentro da nave. Exceto, é claro, ele mesmo. Ele podia se dissolver com
uma palavra, se viesse dela, e então ser refeito por uma outra.
"Acertei em me casar com ela", pensava repetidamente, enquanto lia. "E errei ao deixá-la.
Enganei-a e a mim mesmo e aos meus filhos, e pelo quê? Para terminar preso aqui no espaço
enquanto ela envelhece e morre, e então voltar e assistir a algum moço esperto tomar o meu
lugar de direito como comandante de todas as esquadras, enquanto eu pairo atrás dele, como
relíquia de uma guerra passada, que interpretou o clichê errado." Ao invés de voltar para casa
num saco plástico para sua família enterrar, era sua família que envelhecia e morria enquanto ele
voltava ainda... ainda jovem. Jovem e totalmente sozinho, sem propósito exceto pela pequena
questão de salvar a raça humana, e que nem estaria em suas mãos.
As cartas dela se acalmavam, depois de um tempo. Tornaram-se relatórios mensais sobre a
sua família. Como se ele fosse uma espécie de diário para ela. Um lugar em que ela pudesse se
questionar se fazia a coisa certa ao criar seus filhos - severa demais, estrita demais, indulgente
demais. Se suas decisões poderiam ter um resultado ou motivo errado, ela então se perguntava
constantemente se deveria ter agido de modo diferente. Isso, também, fazia parte da mulher que
ele havia conhecido e amado e apoiado infinitamente.
Como ela se segurava sem ele? Ao que parecia, recordava-se das conversas que costumavam
ter, ou imaginava novas conversas. Inseria o seu lado, nas cartas. "Eu sei que você me diria que
fiz as coisas certas... que não tive escolha... É claro que diria... como sempre me disse... Ainda
estou fazendo as mesmas e velhas..."
As coisas que uma viúva diria a si mesma, acerca do seu falecido marido.
Mas viúvas ainda podiam amar seus maridos. "Ela havia me perdoado."
E finalmente, numa carta escrita há pouco tempo - na última semana; há meio ano atrás - ela
o disse abertamente. "Espero que tenha me perdoado por ter ficado tão brava com você, quando
nos divorciamos. Sei que você não teve outra escolha, além de ir, e que estava tentando ser gentil
ao cortar todas as amarras, para que eu pudesse seguir com a vida. E eu fui em frente, exatamente
como você disse que eu deveria. Vamos, por favor, perdoar um ao outro."
As palavras o atingiram como uma aceleração de três-g. Ele engasgou e chorou e o
computador ficou preocupado.
- O que está errado? - o computador perguntou. - Um sedativo parece necessário.
- Estou lendo uma carta da minha esposa - disse. - Estou bem. Nada de sedativos.
Mas ele não estava bem. Porque sabia o que Graff e a ei não poderiam ter sabido, quando
deixaram esta mensagem passar. Graff havia mentido para ele. Havia retido informações.
Pois o que Mazer havia dito à sua esposa foi que ela poderia seguir com a vida e se casar
outra vez.
Era isso o que ela estava lhe contando. Alguém lhe havia proibido de dizer ou escrever algo
que lhe contaria que Kim havia se casado com um outro homem e que provavelmente tivera mais
filhos - mas ele sabia, porque essa era a única coisa que ela teria pretendido dizer, quando
escreveu: "E eu fui em frente, exatamente como você disse que eu o deveria." Esse tinha sido o
centro da discussão. Kim insistindo que o divórcio apenas fazia sentido se ela pretendesse casar-se novamente, ele dizendo que é claro que ela não pensava em casar-se de novo agora, porém
mais tarde, quando finalmente se desse conta de que ele nunca voltaria enquanto ela vivesse, ela
não teria que escrever e pedir-lhe que aceitasse o divórcio, que já estaria pronto e ela poderia ir
em frente, sabendo que tinha a sua bênção - Kim lhe dera um tapa e caíra em prantos porque
Mazer pensava tão pouco dela e do seu amor por ele, que pensava que ela poderia esquecer e se
casar com outra pessoa...
Mas ela havia, e isso estava partindo o seu coração, porque ainda que ele tivesse se
comportado com nobreza ao insistir no divórcio, acreditara nela quando ouviu que ela nunca
amaria outro homem.
E ela amava um outro homem. Ele estivera fora por apenas um ano e ela...
Não, estivera fora por três décadas agora. Talvez ela tenha levado dez anos para achar outro
homem. Talvez...
- Eu terei que relatar essa resposta física - disse o computador.
- Faça o que tiver de fazer - Mazer disse. - E o que será, me mandar para o hospital? Ou, já
sei, eles poderiam cancelar a missão!
Acalmou-se, porém - berrar contra o computador o fez se sentir razoavelmente melhor.
Muito embora seus pensamentos corressem para muito além das palavras que lia, ele de fato leu
todas as outras cartas, e agora podia ver insinuações e implicações. Muitas referências
inexplicadas a "nós" e "conosco", nas cartas. Ela queria que ele soubesse.
- Envie isto a Graff. Diga-lhe que sei que ele descumpriu sua palavra quase assim que a deu.
A resposta retornou em um instante.
- Acha que eu não sei exatamente o que enviei?
Ele sabia? Ou apenas acabara de se dar conta de que Kim havia feito passar uma mensagem,
e agora Graff fingia estar sabendo desde o início...
Uma outra mensagem de Graff:
- Acabei de ouvir do seu computador que o senhor teve uma forte resposta emocional às
cartas. Lamento profundamente por isso. Deve ser um desafio, viver na presença de um
computador que relata tudo o que o senhor faz a nós, e então uma equipe de psicanalistas tenta
imaginar como responder, a fim de chegar ao resultado desejado. Meu próprio sentimento é de
que, se pretendemos confiar o futuro da raça humana a este homem, talvez devêssemos contar-lhe tudo o que sabemos e conversar com ele como se fosse um adulto. Mas as minhas próprias
cartas têm de passar pelo mesmo painel de analistas. Por exemplo, eles me deixam lhe contar
sobre eles porque esperam que venha a confiar mais em mim, sabendo que não gosto do que
fazem. Até me deixam contar-lhe isto, como mais uma tentativa de permitir que a confiança seja
construída por meio da confissão recursiva da trapaça e da enganação. E aposto que está
funcionando.
"Que jogo ele está jogando? Que partes das suas cartas são verdadeiras?" O painel de
analistas fazia sentido. A mente militar: ache um modo de negar os seus próprios recursos, de
modo que eles fracassem antes mesmo que você comece a usá-los. Mas se Graff realmente
deixou passar despercebida a admissão de Kim, de que ela havia se casado novamente, sabendo
que os analistas não a perceberiam, isso então significava que ele estava do lado de Mazer? Ou
meramente que ele era melhor do que os analistas, em imaginar como manipulá-lo?
"Você não pode ler nenhum sentido secreto nesta carta", Graff havia dito. Significava que
havia um sentido secreto? Mazer a leu novamente, e agora o que ele disse na terceira sentença
assumiu um outro sentido possível. "Viver na presença de um computador que relata tudo o que
você faz a nós." A princípio ele o lera como se significasse "relata a nós tudo o que você faz."
Mas e se ele literalmente quisesse dizer que o computador iria relatar tudo o que Mazer fizesse a
eles?
Significaria que haviam detectado a sua indetectável reprogramação do computador.
O que explicaria o painel de psicanalistas e a súbita e nova urgência em encontrar um
substituto para Mazer como comandante.
Então o gato estava fora do saco. Mas eles não iam lhe contar que sabiam o que ele tinha
feito, porque era ele a parte volátil que fizera algo insano, e por isso não poderiam crer que ele
tivesse um propósito racional, e então falar abertamente com ele.
Tinha de fazê-los enxergar e perceber que ele não era insano. Tinha de assumir o controle da
situação. E a fim de chegar a isso, precisava confiar que Graff era o que ele tão obviamente
queria que Mazer pensasse que era: um aliado no esforço de encontrar o melhor comandante
possível para a ei, quando a campanha final finalmente começasse.
Mazer olhou no espelho e debateu se deveria melhorar sua aparência. Havia muita gente
insana que tentava, pateticamente, parecer mais sã vestindo-se como gente normal. Mas então,
ele havia se deixado ficar terrivelmente desgrenhado e ficava nu o tempo todo. Ao menos podia
se lavar e se vestir e tentar parecer com o tipo de pessoa que os militares tratariam com respeito.
Quando se aprontou, girou para a posição e disse ao computador que começasse a gravar sua
mensagem visual para transmissão posterior. Suspeitava, porém, que não haveria razão para
editá-la - a gravação bruta seria aquela que o computador iria transmitir, já que ele obviamente
havia relatado a sua reprogramação anterior.
- Tenho razão para acreditar que vocês já sabem da mudança que fiz na programação do
computador de bordo. Aparentemente eu poderia tomar do controle do computador o sistema de
navegarão, mas não o impediria de relatar o fato a vocês. O que sugere que vocês pretendiam
que esta caixa fosse uma prisão, mas não foram muito competentes nisso.
"Então vou lhes contar exatamente o que precisam saber. Vocês, ou, a esta altura, os seus
predecessores, se recusaram a acreditar em mim quando lhes disse que não era o homem certo
para comandar a Esquadra Internacional durante a campanha derradeira. Foi-me dito que fariam
uma procura por um substituto adequado, mas no fim eu estava certo.
"Sabia que qualquer 'procura' seria perfunctória ou ilusória. Vocês estavam apostando tudo
em mim. Contudo, também sei como os militares trabalham. Aqueles que tomaram as decisões
para contar comigo estarão há muito tempo na reserva, antes que eu retorne. E o quanto mais
perto estivermos do momento do meu retorno, mais a nova burocracia temeria a minha chegada.
Quando estivesse aí, me encontraria à testa de uma organização militar completamente incapaz,
cujo propósito primário seria me impedir de fazer qualquer coisa que pudesse custar o trabalho
de alguém. Assim, eu estaria impotente, mesmo se fosse mantido apenas como uma figura de
fachada. E todos os pilotos que desistiram de tudo o que conheciam e amavam na Terra a fim de
sair e confrontar os fórmicos no seu próprio espaço, estariam sob o comando real do bando
costumeiro de alpinistas burocráticos.
"Sempre se leva seis meses de guerra e algumas derrotas pavorosas para limpar o campo dos
inúteis. Mas não temos tempo para isso nesta guerra, não mais do que tivemos na última. Por
sorte, minha insubordinação encerrou as coisas abruptamente. Desta vez, porém, se perdermos
qualquer batalha então teremos perdido a guerra. Não teremos segunda chance. Não temos
margem de erro. Não podemos nos dar ao luxo de perder tempo nos livrando de vocês - vocês,
os idiotas que estão me assistindo agora mesmo, os idiotas que vão deixar a raça humana ser
destruída a fim to preservar seus patéticos trabalhos burocráticos.
"Então reprogramei o navegador da minha nave de modo a ter controle completo sobre ela.
Vocês não podem suplantar minha decisão. E minha decisão é esta: eu não vou voltar. Não vou
desacelerar e dar meia-volta. Vou continuar viajando.
"Meu plano era simples. Sem poder contar comigo como seu futuro comandante, vocês não
terão escolha além de procurar um novo líder. Não fazer de conta, mas realmente procurar.
"E acho que devem ter adivinhado que era este o meu plano, porque começaram a me deixar
receber mensagens do Tenente Graff.
"Então agora tenho o problema de tentar fazer sentido do que vocês estão tramando. Meu
palpite é que Graff tem treinamento de psicólogo. Talvez trabalhe como analista de inteligência.
Meu palpite é que ele na realidade é muito brilhante e inovador e obteve resultados espetaculares
em... em alguma coisa. Então vocês decidiram ver se ele poderia me trazer de volta aos trilhos.
Só que ele é exatamente o tipo de rebelde que os apavora. É mais esperto do que vocês, e então
vocês têm que se certificar de que o impedirão de obter o poder de fazer qualquer coisa que
pareça ser perigosa. E já que qualquer coisa remotamente efetiva irá assustá-los, o principal
projeto dele tem sido imaginar como contornar vocês a fim to estabelecer uma comunicação
honesta entre ele e eu.
"Então aqui estamos, num tipo de impasse. E todo o poder está em suas mãos, neste
momento. Então deixe-me dizer quais são as suas escolhas. Há apenas duas.
"A primeira é a escolha difícil. Vai lhes causar arrepios. Alguns de vocês irão para casa
dormir três dias em posição fetal com seus polegares enfiados na boca. Mas não há negociação.
Isto é o que vocês farão:
"Darão ao Tenente Graff poder real. Não vão dar a ele um posto elevado e uma escrivaninha
e uma carga de burocracia. Darão a ele autoridade genuína. Tudo o que ele quiser, ele obtém.
Porque a única razão de ele estar vivo é esta: encontrar o melhor comandante possível para as
esquadras que decidirão o futuro da raça humana.
"Para fazer isso, primeiro ele tem que descobrir como identificar aqueles com o maior
potencial. Vocês lhe darão toda a ajuda que ele solicitar. Todo o pessoal que ele solicitar, não
importando o seu posto, treinamento, ou o quanto algum almirante idiota os odeia ou adora.
"Então Graff pensará em como treinar os candidatos que forem identificados. De novo,
vocês farão o que ele quiser. Nada é caro demais. Nada é difícil demais. Nada requer uma única
reunião de comitê para se obter a concordância. Todo mundo na ei e todo mundo no governo é
servo de Graff, e tudo o que jamais deverão pedir-lhe é que esclareça as suas instruções.
"O que eu exijo de Graff é que ele trabalhe em nada além da identificação e do treinamento
do meu substituto como comandante de campo da Esquadra Internacional. Se ele começar a
erigir um reino burocrático - em outras palavras, se ele acabar sendo apenas mais um idiota - eu
saberei, e paro de falar com ele.
"Em retorno por vocês darem a Graff essa autoridade, e uma vez que eu esteja satisfeito de
que ele a tem e a está usando corretamente, então de imediato darei meia-volta nesta nave.
Voltarei para casa alguns anos mais cedo do no plano original. Tomarei parte do treinamento de
qualquer comandante que vocês tenham. Avaliarei o trabalho de Graff. Ajudarei a escolher entre
os candidatos para o trabalho, se vocês tiverem mais do que um que potencialmente poderia
realizá-lo.
"E o tempo todo, Graff se comunicará comigo constantemente por ansível, de modo que tudo
o que ele fizer será feito com o meu aconselhamento e aprovação. Assim, por meio de Graff, eu
assumo o comando da busca por todos os líderes da guerra agora.
"Mas se agirem como os idiotas que lideraram a esquadra durante a guerra que eu ganhei, e
tentarem ofuscar e prevaricar e procrastinar e desorientar e manipular e mentir de modo a
impedirem Graff e eu de controlarmos a escolha e o treinamento de comandante de campo, então
eu não darei meia-volta a esta nave, nunca.
"Eu apenas continuarei navegando até o fim dos tempos. Nossa campanha fracassará. Os
abelhudos voltarão para a Terra e desta vez terminarão o serviço. E eu, nesta nave, serei o último
ser humano vivo. Mas não será culpa minha. Será sua, porque não tiveram a decência e a
inteligência de saírem da frente e deixarem as pessoas que sabem como fazer o serviço de salvar
a raça humana fazerem isso.
"Pensem pelo tempo que quiserem. Tenho todo o tempo do mundo. Mas mantenham isto em
mente: quem quer que tente assumir o controle desta situação e organizar comitês para estudar a
sua resposta a este vídeo - essas são as pessoas que vocês precisam designar para serviços
burocráticos distantes e tirá-los da ei agora mesmo. Elas são os aliados dos abelhudos - são
aquelas que terminarão nos matando a todos. Já designei o único líder possível para este
programa: o Tenente Graff. Não há acordo. Nenhuma manobra. Façam dele um capitão, deem a
ele mais autoridade real do que a de qualquer outro humano vivo, fiquem prontos para fazer o
que quer que ele lhes diga para fazer, e deixem que ele e eu trabalhemos.
"Se eu acredito que vocês realmente farão isso? Não. Por isso é que reprogramei minha nave.
Lembrem-se apenas que eu sou o cara que salvou a raça humana, e o fiz porque fui capaz de ver
exatamente como o sistema militar dos abelhudos funcionava e de encontrar o seu ponto fraco.
Também vi como o sistema militar humano funciona, e conheço o seu ponto fraco, e sei como
consertá-lo. Acabei de lhes dizer como. Ou vocês o fazem ou não. Agora tomem suas decisões e
não me incomodem novamente a menos que tenham tomado a decisão certa."
Mazer se voltou para a mesa e selecionou salvar e enviar.
Quando se certificou de que a mensagem fora enviada, retornou ao seu espaço de dormir e se
deixou pensar outra vez em Kim e Pahi e Pahu, em seus netos, no novo marido de sua esposa e
nos filhos que eles poderiam ter. O que não se deixou pensar foi na possibilidade de voltar à
Terra para conhecer esses bebês já adultos e tentar encontrar um lugar entre eles como se ainda
estivesse vivo, como se restasse alguém na Terra que ele conhecesse e pudesse amar.
*
A resposta não veio por um período completo de doze horas. Mazer imaginou, divertido, os
conflitos que deviam estar se passando. Gente lutando por suas colocações. Preenchendo
relatórios provando que Mazer estava louco e portanto não deveria ser ouvido. Lutando para
neutralizar Graff - ou bajulá-lo, ou para serem indicados como seu supervisor imediato.
Tentando imaginar um modo de enganar Mazer para que pensasse que haviam consentido sem
tê-lo feito realmente.
A resposta, quando veio, veio de Graff. Era uma visual. Mazer ficou satisfeito em ver que,
ainda que Graff fosse de fato jovem, vestia seu uniforme de um jeito desleixado que sugeria que
aparência de oficial não uma prioridade particularmente alta para ele.
Usava a insígnia de capitão e tinha uma expressão séria que estava a apenas meio segundo
longe de um sorriso.
- Mais uma vez, Almirante Rackham, com apenas uma arma em seu arsenal, o senhor soube
bem onde apontá-la.
- Eu tinha dois mísseis da primeira vez - Mazer disse.
- Gostaria que eu anotasse... - começou o computador.
- Cale a boca e continue com a mensagem - Mazer rosnou.
- O senhor deveria saber que sua ex-esposa, Kim Arnsbrach Rackham Summers... e sim, ela
mantém o seu nome como parte do nome legal dela, foi instrumental em tornar isto uma
realidade. Porque sempre que alguém vinha com um plano de como enganar você e eu, fazendo-nos pensar que estavam em concordância com as suas ordens, eu a trazia à reunião. Sempre que
alguém dizia, "vamos fazer o Almirante Rackham acreditar" em uma mentira ou outra, ela ria. E
a discussão basicamente acabava ali.
"Não posso dizer quanto tempo vai durar, mas neste ponto a ei parece estar pronta a
concordar plenamente. O senhor deveria saber que isso envolveu cerca de duzentas pessoas indo
para a reserva antecipadamente, e quase mil transferências, incluindo quarenta oficiais-generais.
Você ainda sabe como explodir as coisas.
"Há coisas que já sei sobre a seleção e o treinamento, e ao longo dos próximos anos nós nos
falaremos constantemente. Mas não posso esperar para agir até que o senhor e eu tenhamos
conferenciado a respeito de tudo, simplesmente porque não há tempo a perder e a dilatação
temporal soma semanas a todas as nossas conversas.
"Contudo, se eu fizer algo de errado, diga-me e eu mudarei. Nunca vou contar que já fizemos
isto ou aquilo como se isso fosse uma razão para não fazê-lo do jeito certo, no fim das contas.
Vou mostrar que o senhor não cometeu um erro ao confiar em mim para isto.
"O que me intriga, porém, é como decidiu confiar em mim. Minhas comunicações com o
senhor foram cheias de mentiras, ou eu nem poderia ter-lhe escrito. Não o conhecia e não tinha
pista de como lhe contar verdade de um modo que passasse pelos comitês que aprovavam tudo.
A pior coisa é que de fato sou muito bom no jogo burocrático, ou não teria chegado à posição de
me comunicar diretamente com o senhor em primeiro lugar.
"Então deixe-me dizer… agora que ninguém estará censurando minhas mensagens, que sim,
acho que a mais alta prioridade é encontrar o substituto certo do senhor como comandante de
campo da Esquadra Internacional. Mas quando tivermos feito isso, e sei que esse é um 'se'
enorme, terei planos próprios.
"Porque ganhar esta guerra em particular contra este inimigo em particular é importante,
claro. Mas quero ganhar todas as guerras futuras do único modo possível: levando a raça humana
para fora deste planeta e deste sistema estelar. Os fórmicos já entenderam isso... você tem que se
dispersar. Tem que se espalhar até ser impossível de se matar.
"Espero que no fim eles tenham fracassado. Espero que possamos destruí-los tão
completamente que não possam nos desafiar por mil anos.
"Mas ao final desses mil anos, quando uma outra esquadra dos abelhudos voltar para realizar
a sua vingança, quero que eles descubram que os humanos se espalharam por mil mundos, e não
há esperança de nos encontrar a todos.
"Acho que sou apenas um cara que enxerga a longo prazo, Almirante Rackham. Mas
quaisquer que sejam os meus objetivos de longo alcance, pelo menos isto é certo: se não
tivermos o comandante certo e se não vencermos esta guerra, não vão fazer diferença os outros
planos que se possa ter.
"E você é esse comandante, senhor. Não o comandante de campo, mas o comandante que
achou um modo de obrigar as forças armadas a se reformularem a fim de encontrar o
comandante de campo certo, sem desperdiçar no processo as vidas de incontáveis soldados em
derrotas sem sentido.
"Senhor, não retornarei a esse tópico. Mas vim a conhecer a sua família, nas últimas
semanas. Conheço agora algo de que o senhor desistiu, a fim de estar na posição em que se
encontra agora. E lhe prometo, senhor, que farei tudo que estiver ao meu alcance para garantir
que os seus sacrifícios e os deles tenham valido a pena."
Graff prestou continência, e então desapareceu do holoespaço.
E ainda que não pudesse ser visto por ninguém, Mazer Rackham devolveu a continência.